Por Thiago Gomes Viana
O Decreto nº 5.978/2006 regulamenta a questão dos passaportes. O passaporte diplomático é, via de regra, concedido para autoridades, diplomatas ou servidores públicos em missão especial no exterior. O portador desse documento fica dispensado de filas e revista, não paga nada por ele e os vistos, em alguns casos, têm facilidade para sua concessão.
Quando explodiu, em janeiro de 2011, o escândalo da renovação dos passaportes diplomáticos para filhos e netos do ex-presidente Lula, no fim do mandato deste, o Itamaraty, após ser pressionado pela opinião pública, definiu critérios mais rigorosos para conceder tal documento, inclusive determinando a publicação do nome dos beneficiados no Diário Oficial da União.
Basicamente, ficou estabelecido que somente conceder-se-ia, em caráter excepcional, o passaporte diplomático a outras pessoas se ficasse demonstrado que o “(…) requerente está desempenhando ou deverá desempenhar missão ou atividade continuada de especial interesse do país, para cujo exercício necessite da proteção adicional representada pelo passaporte diplomático”, nos moldes do art. 1º, inc. II, da Portaria n.º 98/2011. Após isso, os passaportes diplomáticos irregulares foram cancelados, ou pelo menos, deveriam ter sido.
Qual não foi nossa surpresa em saber, como amplamente noticiado pela mídia, da concessão e/ou renovação de passaportes diplomáticos a líderes religiosos da Igreja Mundial do Poder de Deus, Internacional da Graça, Igreja Universal do Reino de Deus e Igreja Assembleia de Deus, Igreja Católica, dentre eles o apóstolo Valdemiro Santiago de Oliveira, o missionário R. R. Soares e D. Geraldo Majella Agnelo.
Cabe ao ministro das Relações Exteriores a tarefa de conceder ou não o passaporte, de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, além de o pedido atender aos “interesses do País”. Estarrecedora a justificativa do Itamaraty: é para a manutenção dos trabalhos dessas igrejas no exterior (PARAGUASSU, 2013).
Pergunta-se: em quê a “manutenção de atividades” das igrejas no exterior se inclui nos “interesses do País”?
A um só tempo, violaram-se importantes princípios constitucionais republicanos: legalidade, laicidade estatal, moralidade administrativa e igualdade.
Por maiores que sejam os benefícios das religiões para o bem estar dos fieis, a legalidade foi desrespeitada porque inexiste “interesse do país” em manter atividades religiosas, seja no território nacional ou fora dele, logo houve desvio de finalidade – ou será que por acaso a máxima “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” foi inserida como objetivo fundamental da República brasileira? Violou-se também a laicidade estatal (art. 19, inciso I, CR/88): deve o Estado manter uma posição neutra em relação às crenças e descrenças dos cidadãos, não podendo embaraçar ou subvencionar o funcionamento de cultos ou igrejas; nem se fale em “cooperação de interesse público” entre Estado e igreja, pois, frise-se mais uma vez, não há interesse público em manter, ampliar ou propiciar as atividades religiosas.
A inobservância da moralidade administrativa, que aqui se liga à igualdade, é evidente: enquanto um médico que, por exemplo, participe de pesquisa para encontrar a cura da dengue – não existe aí “interesse do país”? – não só paga pelo passaporte, como enfrenta (às vezes, quilométricas) filas para conseguir visto e (quilométricas) filas para embarque nos voos, líderes religiosos são disso dispensados para promover suas religiões no exterior. A única exceção aqui talvez sejam os clérigos católicos que poderiam se beneficiar de um acordo entre o Brasil e o Vaticano (um Estado) para concessão desses passaportes.
Poder-se-ia falar nas atividades sociais desenvolvidas por essas entidades religiosas, contudo quantos milhares de ONGs, empresas, institutos, associações, pesquisadores, filantropos no Brasil também promovem relevantes atividades de promoção e defesa da cidadania, de Direitos Humanos (atividades afinadas com os princípios constitucionais de “prevalência dos direitos humanos” e “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade” nas relações internacionais – art. 4º, incs. II e IX, CR/88) e, ainda assim, não gozam do benefício do passaporte diplomático? Não por acaso, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT) solicitou passaportes diplomáticos para alguns de seus integrantes, alegando, basicamente, que tem atuação internacional (com status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas) na promoção e defesa dos direitos humanos de LGBTs em países onde ser LGBT é crime (ASSOCIAÇÃO, 2013). Levada às últimas consequências, o passaporte diplomático deveria ser concedido aos representantes de todas essas entidades elencadas, o que, no plano prático, banalizaria o uso desse documento, além do que, se não desvirtuaria sua finalidade, tornaria o processo de concessão e utilização do mesmo bastante problemático.
Infelizmente, essas regalias a líderes religiosos são reflexo de um problema maior, ainda ignorado pela opinião pública: o risco cada vez mais concreto de um fundamentalismo teocrático no Estado brasileiro.
A partir das eleições presidenciais de 2010 podemos observar um preocupante lobby religioso de matriz cristã nas eleições políticas e no Parlamento, colocando em grave risco o caráter laico e secular do Brasil.
Do contrário, que pensar do corre-corre de candidatos a prefeito em São Paulo atrás de apoio de igrejas? Sintomática a multa de R$ 5 mil imposta pela Justiça eleitoral ao candidato do PSDB, José Serra, por ter feito propaganda em uma igreja evangélica durante a campanha.
Levando em consideração o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal face ao inativismo parlamentar – como alerta Barroso (2012), o “(…) problema brasileiro atual não é excesso de judicialização, mas escassez de boa política” –, a bancada religiosa (sobretudo, a frente evangélica) propôs, ao arrepio da Carta Magna, uma série de projetos de lei ou de outros atos normativos para: a) restringir a união estável apenas para casais heteroafetivos; b) suspender, por meio de decreto legislativo(!!!) a decisão do STF sobre união estável homoafetiva (e, por conseguinte, o direito à conversão ao casamento civil e à adoção conjunta de criança) e, ainda, convocar plebiscitos para decidir a respeito dessa temática; c) derrubar a proibição de psicólogos oferecerem “cura” para homossexualidade (quando esta há mais de 20 anos não é considerada doença, perversão pela Organização Mundial da Saúde); d) instituir a leitura obrigatória da Bíblia antes das sessões no Congresso Nacional; e) conceder isenção fiscal para entidades ligadas às igrejas; f) criminalizar a contratação de serviços sexuais; g) vedar as ações educativas estatais em apoio a minorias sexuais para combater o bullying escolar.
E mais: o que pensar da recusa às religiões de matriz africana de um espaço do Congresso Nacional para realizar um xirê (“culto”), enquanto igrejas evangélicas fazem desses mesmos espaços verdadeiras extensões de seus templos, segundo denúncia do deputado Jean Wyllys (OLIVEIRA, 2012)? Ou das críticas da ONU classificando o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras como racista, intolerante e proselitista (CHADE, 2011)? Ou, por fim, que pensar da entrevista de Pedro Chequer, representante no Brasil do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), onde ele denuncia que a pressão de religiosos sobre governo, além de ameaçar caráter laico do Estado, vem fazendo o Brasil não conduzir a contento os programas de prevenção da AIDS nos últimos anos, considerando que o país era pioneiro nesse processo (ARRUDA, 2012)?
Não deixa de ser inusitado que a bancada evangélica, ávida defensora da “moral e dos bons costumes”, se notabilize pela inexpressividade em propor projetos de lei de interesse nacional e por ter os membros mais processados e mais faltosos, segundo a ONG Transparência Brasil (BANCADA, 2012). Preocupa-nos, ainda, recordar as denúncias de lavagem e remessa ilegal de dinheiro, tráfico, corrupção e dos jatinhos abarrotados de dinheiro que pesam sobre membros de igrejas evangélicas. E lá fora a história se repete: em 2011 pastores angolanos foram demitidos da Igreja Mundial do Poder de Deus após denunciarem desvio de mais de 03 milhões de dólares do dízimo, (LOPES, 2011) sem falar na notificação do Banco Nacional de Angola a essa mesma igreja a respeito das constantes acusações de irregularidade nas contas bancárias e o envio “fraudulento” de remessas de dólares (CRUZADAS, 2011). Ressalto que não estou a insinuar que os líderes religiosos beneficiados por esses passaportes especiais irão cometer tais atividades ilícitas, criminosas; apenas trouxe fatos para subsidiar o debate.
A recente discussão acerca do pedido do Ministério Público Federal para retirada da consigna “Deus seja louvado” das cédulas do real e, agora, essa farra de passaportes diplomáticos para líderes religiosos promoverem suas religiões no exterior, além dos fatos expostos acima, demonstram, cristalinamente, que está mais do que na hora de o Brasil tomar a sério a laicidade, antes que seja tarde demais.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO gay pede passaporte diplomático ao Itamaraty. G1, 17 jan. 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/01/associacao-de-homossexuais-pede-passaporte-diplomatico-ao-itamaraty.html>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
ARRUDA, Roldão. No Brasil, pressão de religiosos sobre governo ameaça caráter laico do Estado, diz representante do Unaids. Estadão, 13 jul. 2012. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/no-brasil-pressoes-de-religiosos-sobre-o-governo-ja-ameacam-cararater-laico-do-estado-diz-representante-do-unaids/>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
BANCADA religiosa: a mais ausente, inexpressiva e processada. Sul 21, 04 jun. 2012. Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/2012/06/bancada-religiosa-a-mais-ausente-inexpressiva-e-processada/>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
BARROSO, Luís Roberto. A ascensão política das Supremas Cortes e do Judiciário. Revista Consultor Jurídico, 22 nov. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-06/luis-roberto-barroso-ascensao-politica-supremas-cortes-judiciario>. Acesso em 15 jan. 2013.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Decreto nº 5.978/2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5978.htm>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
________. Ministério das Relações Exteriores. Portaria n.º 98/2011. Disponível em: < http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/conheca-o-ministerio/comunidades-brasileiras/divisao-de-documentos-de-viagem-ddv/solicitacao-de-passaportes-oficiais-e-diplomaticos/portaria-mre-98>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
CHADE, Jamil. ONU critica imposição de ensino religioso em escolas públicas. Estadão, 28 maio 2011.Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,onu-critica-imposicao-de-ensino-religioso-em-escolas-publicas,724971,0.htm>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
CRUZADAS Em nome do “Kumbu” na Igreja Mundial em Angola. Ango Notícias, 27 jun. 2011. Disponível em: <http://www.angonoticias.com/Artigos/item/30657>. Acesso em: 17 de jan. de 2013.
LOPES, Paulo. Angola notifica Mundial por envio ilegal de dinheiro ao Brasil. Blog Paulo Lopes, 28 jun. 2011. Disponível em: <http://www.paulopes.com.br/2011/06/angola-notifica-igreja-mundial-por.html>. Acesso em: 18 de jan. de 2013.
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Fonte: Atualidades do Direito